Lembranças

"Os freaks e os straights"

Publiquei no Diário de Moçambique - 17-11-2007

Lá para os anos 70 era comum os jovens desinibidos e rebeldes tratarem-se por freak, ao mesmo tempo que estendiam, eles próprios, a designação straight aos tímidos, ou seja, os rectos. O certo é que o termo straight causava incómodo a todo que assim fosse chamado. Era como se houvesse uma barreira ou fronteira que diferenciasse dois mundos.

Os freaks, circunspectos a geração hippie, tudo faziam para perdurar a sua marca de tipos arrojados, amantes de farras, girls. Mas era vezeiro e useiro os freaks tratarem-se por joe, uma senha de marca e etiqueta de classe social ou grupo que os tornava cúmplices de si mesmos. Me faziam lembrar coisas de aventuras e os romances de Enid Blyton como "OS CINCO", pelas suas cogitações. Porque os "freaks" costumavam andar em bandos embrulhados em suas calças "bocas de sino" jeans ou La Finese apertadas nos quadris e coçadas nos joelhos, penteados Jimmy, o Hendrix, uma mascote da música, além de tamancos. Os tipos primavam pelo lado da errância, e regra geral, davam uns tiros da cannabis sativa, designação científica para a marijuana, maconha, soruma, bangui ou bandja. Eles tinham o culto pelos heróis, o Che Guevara, o Fidel Castro, o astro Bob Marley. E o vocabulário dos freaks era restrito, havendo termos célebres como gajo e gaja. Não era fácil estar-se no meio dos freak, que além de terem a sua gíria tudo faziam para descriminar todo aquele que se fazia de refinado e que não se identificasse com as normas da sua legião.

Os freaks tomam hoje nomes como "pedalado", "acelerado", "gang", e claro, não descuram na sua essência, como também mantém hábitos que os difere dos comumente "matrecos", o equivalente de straights.

Os freaks sempre se destinguiram dos outros por causa dos ícones que usavam para que se dessem nas vistas, até dos incautos. Tinham apetência pelos óculos escuros e quando mais impermeáveis à luz melhor ainda para que não nos dessem a ver os seus olhos vermelhos de bangui. Também usavam a bandeira da Jamaica como mascote no gorro tricolor, ao pescoço o mapa de África em miniatura e no pulso pulseiras com que se nos chamavam atenção: de rabo de hipopótamo, colher ou garfo que inutilizavam para o efeito após os terem arrancado de casa. Normalmente, andavam com as camisas desbotadas abaixo da gola para exibirem os símbolos e cabedais. A musculatura.

Regra geral, entre os freaks havia uns que eram mais que os outros. Houve casos dos que tentaram superar os freaks liberais e acabaram na freakalhada, ou seja, caíram em desgraça. É o género do Vick, Kim e outra malta que agitava as boites e a Beira toda. Como cedo encurtaram a carreira estudantil viriam a ocupar-se da freakalhada, saltando do bangui, que diziam lhes ter tornado leve e sem efeito, para o haxe e a coca. Ironia do destino, seria esta mesma haxe e coca que os haveria de diminuir os corpos, definhando-os a cada dia subsequente.

No meu bairro foram os "gangs" que retalharam a área em duas áreas distintas: o Kingstown e Vaticano. Aos da minha área, por sermos uma plêiade de matrecos, atribuíram o epíteto Vaticano, restando o Kingstown para eles. Eram freaks que animaram a minha infância, com gramofones, gira-discos, gravadores de bobinas ou precisamente os discos da defunta somodiscos. Eram tipos que me fazem rememorar o "Fank", "Rock n'roll", "Break Dance" e "Street Dance", nomes como Miriam Makeba, Mano Dibago, Ray Charles, o nosso Fanny Fumo, que anestesiavam as farras. Foi por eles que conheci os "ABBA", a Dona Summer, o Elvis, o rei que se mantém vivo em mim. Nada tinham a ver com o marranço, como eventualmente os straights nada tinham a ver com meninas, sendo-lhes as boates um mundo à parte, estranho. Sagraram-se campeões no fumo e álcool, menos nos futebóis e estudos.

Eles já cá não moram. Eles já cá não estão. Conservo uma pausa para esta escrita. Acendo uma vela. Concedo-lhes um minuto de silêncio a estes que manifestaram o seu heroísmo em tudo onde me manifestei cobarde.

Lágrimas espreita-se-me os cantos dos olhos. Pena a bebida seja a fonte de muitos males. Confesso, hoje beberia para esgravatar a dor que me rumina o cérebro.

Aqui a homenagem.

Paz às suas almas.

Jowane da ‘Xpangara: o eterno apaixonado

Publicado no Diario de Moçambique 29/12/07

Lembram-se do mulato Jowane, da Xipangara? Daquele Jowane que dizia ter uma noiva chamada Lindinha, lá para Xipangara. Daquele Jowane que fantasiava cenas eróticas cujos actores eram os dois, ou seja, ele e a Lindinha, lembram-se dele? Vi-0 ontem pedalando a sua burra na praça da independência chamei-o: Jowane! Momentaneamente o tipo correspondeu-me com um aceno, sem deixar de bailar nos lábios aquele seu sorriso matreiro.

E lá ele seguiu, até desaperecer na penumbra da tarde. Foi preciso vê-lo para acordar lembranças escondidas pelos vinte anos dos nossos desencontros. Era um dos mais perfeitos em engendravar mentiras, o tipo. Parecia diplomado.

Ouvia-mo-lo como um sacerdócio na missa. No Macurungo, o tempo passava-se sobre os muros, na casa do casal Chico e Chiquita, ou debaixo da macieira do Fífi. Nós miúdos, ingénuos, ele com a barba por aparar e os púbicos vigiando os movimentos dos testículos ao tempo que ele mudava de posição. O volume dos seus materiais era incompatível para o espaço material dos curtos calções que habitualmente trajava. O sexo dele se nos espreitando de abaixo, como que atento às suas invencionices.

Era o protótipo dos mulatos de origem dividida entre a velha metrópele e a ex-colónia: só conhecia de carros, aliás como se tivesse frequentado uma faculdade. Devo a ele uma panóplia de signficados cujo uso ele fazia-o de forma recorrente: como a combota, que hoje se aplica quando o morto se instala em sua concha.

Mulato bom de coração, o Jowane. Mas eu gostava era de vê-lo mentir como o fazem os tipos de colarinho branco.

Não foi preciso muito tempo para que dessemos com as suas petas. De pai mezungo e mãe preta, seguira as peugadas do progenitor, esse, antigo oficial do exército de comandos portugueses, que depois de namorar a criada, saíra sorrateiramente da colónia, após uma promessa de "até pr'o mês" jamais cumprido. A negra ainda tentou reclamar:

"Estou grávida, Gumercindo!"

"Lá isso eu sei. Trago-te fraldas e o enxoval todo".

"Vamos nos casar, afinal?"

"Claro!"

A promessa caiu em saco roto. Gumercindo partiu para a metrópele. De lá nunca mais voltou. Completa agora quarenta anos desde que embarcou no paquete Porto Amélia. A preta teve que aguentar nove meses de espera solitária até nascer o Jowane, sofrendo humilhações dos familiares que anteviam o retorno para o dia do "São nunca". Este mesmo Jowane que saiu igual ao pai: coração de margarina, mas autêntico. Defeito dele: contar estórias de filmes e das suas intimidades.

As mentiras do Jowane ruminam-me na memória, que transcorridos tantos anos delas ainda me recordo como se estivesse com ele agora, no muro da tia Chiquita. Neste momento em que escrevo estou a ver o Jowane a falar da Lindinha, a miúda que ele gabava ser a sua futura esposa. Estou a vê-lo beijando-a detrás do monte de madeiras, entre as bungavílias, na casa dos pais dela. Estou a ver o Jowane a acariciar a moça, a fazer amor com ela, sem ser espetado pelos picos das bungavílias. Só Deus é que poderia ser tão imune para coisas dessas.

Aliás, de tanto ouvir o Jowane falar da Lindinha, eu acabaria, por isso, inventando para mim uma imagem da moça a enroscar-se e a beijar-se com ele. Mulata. Bela. Tal como o tipo a descrevera: Lábios excitantes, sensuais, dorsos talhados com esmero, pelas mãos dos pais dela, aos quais tenho grande admiração por terem sido escultores aquela beldade. Sim porque, de acordo com Jowane, mais bela que a Lindinha, jamais o mundo conhecera. Nem Penélope, nem Cleópatra. Muito menos a Monalisa. Estas não lhe chegavam ao calcanhares, porque a mulatona fora desenhada com mestria, como tantas outras. O que anestesiava a Xipangara toda.

O único castigo da Lindinha foi ter sido talhada demasiadamente bela. Os pais pensaram: ninguém a merecia a não ser o Jowane, conforme ele gabava-se. A Lindinha não podia estudar porque era muito linda. A única coisa que estava autorizada pelos progenitores era espelhar-se. Tinha em casa uma porrada de empregados. A estes acresciam irmãs, irmãos, pais, que deviam fazer tudo por conta dela , e mais do que isto, em respeito a dádiva de terem uma beleza como aquela no lar.

O Jowane justificava as suas ausências do nosso meio com as ocupações intimistas ao lado da moça. Num ou outro dia se desculpava que não viera ao nosso encontro porque a Lindinha não o despegara, depois de tanto amor ter feito com ela, passe o termo, até com a digna assistência dos parentes dela que os cercavam batendo palmas. Quantas vezes o Jowane terá feito amor com esta rapariga misteriosa, que era de face e expressão ausentes? Se a Lindinha terá falado alguma vez connosco foi através da boca do Jowane. E porque a rapariga era sinónimo de perfeição recordo o Nhabombo dizer que quando fosse dormir, de velas apagadas, bastando ter a certeza que os irmãos dormiam o sono profundo, punha-se de mãos a acariciar o sexo e completava o resto com os cinco dedos.

Ueh! Jowane. A eximia mulher com quem tiveste a ousadia partilhar o amor voraz, louco, foi pena que não te tenha colocado no estandarte, pelo que não poderia te imaginar de burra e velho. E me fizeras acreditar em coisas como a imortalidade que só o mágico amor te levera por intercessão dos devotos antepassados daquela múmia, qe nós os mufanas tínhamos no pedestral. Era mesmo ela a razão de invejavas e brigas na Xipangara, senão Jowane não deixaria de disfrutar momentos de intimidade para se pôr a brincar connosco no Macurungo. Penso que haveria motivo de sobra para que o invejassem. Quem não queria para si uma linda mulher, engenhosa pasteleira como o que ele dizia dela? Foi por isso que andaras de birra em birra, com os maldosos a te selarem defeitos e carimbos pelo corpo. E reconheço-te o heroísmo na defesa, pois lutavas melhor que o Terece Hill, Clint Eastood, Drawmendra, Flash Gordon, Robin Hood, Samurai, Ali Babá ou o Bud Spencer, figuras a que imitavas nos gestos: "Yá wu", "Gu-gu". Eras mesmo bom de murro, tal como o dizias, por isso tinhas a cabeça enterrada no nosso bairro.

Certo, só agora me terei apercebido que os cinemas o tinham envenenado, digo ao nosso Jowane. Por isso, a Lindinha era mais linda que a Marilyn Monroe, que fizera o John Kennedy, por cima teu homónimo, escorregar-se-lhe que nem um pato. A carne é fraca. Se o Kenney perdeu a cabeça por Marilyn, quem serias tu para resistires à tentação da Lindinha? Pena que não deixaram a Lindinha ir além, se não acabaria numa carreira ao lado da Jennifer Lopez, Nicole Kidman, ou mesmo na Hollywood. Pena mesmo que ela não tivesse alcançado o estrelato, deixando-se ficar como um diamante por lapidar, no dizer de Bahassane, pela triste Xipangara, e pior, entre as quatros paredes de uma cubata a chover em tudo que fosse telhado, quando bem poderia ser manequim ou passarelle da Hollywood, de quem ganharias fortunas que dariam para construir mansões nas paradisíacas praias de Bilene, Vilankulo Chocas-mar ou mesmo Pemba. Que a sorte lhe fora madrasta não há quem duvide. E tu terás contribuído imenso para isso, porque não consentias que a beleza dela contagiasse outras almas.

A Lindinha nasceu para ti. Cozinhava para ti. Tirava o fato-de-banho para ti, ao meio de semana no Veleiro, quando a praia estivesse desértica. Talharam-na para que fosse fruto do teu egoísmo, por isso nunca quiseste despegar da Beira. Sei que o receio de perdê-la foi forte, que nunca quiseste trabalhar na Jonh (África do Sul), como terão feito muitos jovens contemporâneos teus. Terá sido a beleza da Lindinha que te entorpeceu a mente a ponto de embargares a viagem para o Zimbabwe e a Alemanha do Leste, país este para que acabarias escrevendo a um amigo comum que voltasse urgentemente a Moçambique porque aqui havia farinha de mandioca (rale em xitsua) à fartura, que era um produto melhor que o resto que havia lá para Europa, coisas de brancos, como o classificaste, mal prestavam. Terá sido a moça a te desviar o juízo a ponto de ausentares com frequência da oficina do Viriato, lá para o Matacuane, que por isso te mandou de férias ilimitadas? Terá sido ainda ela a corromper-te a ponto de não levantares as asas da casa, por onde ficaste desde o minuto em que nos endereçaras convite para exibires a mulata e meteste-te por um quintal donde nunca mais saíste até hoje?

O meu Jeep roubado

Publicado no Diário de Moçambique 27/10/07

O Jeep foi o primeiro carro que alguma vez tive em vida. Sempre tive um fraco pelo Jeep, de preferência, descapotável, razão porque cedo foi colecionando umas coroas, ou seja escudos, para adquirir um automóvel daqueles, em segunda mão.

As minhas poupanças eram tão poucas, que não me podia dar ao luxo de querer um Jeep dos que haviam nos stands. Não obstante, sentia-me confortado por ter poupado dinheiro para adquirir o veículo naquelas condições.

O meu Jeep era da geração Willys. Vendeu-mo o Zé João por cinco escudos. Um preço então pesado para o meu bolso. Mas paguei-o, porque fosse o que fosse, mal me suportava sem aquele Willys.

O meu Jeep era todo pintado cinzento-metálico, que muitos não colhiam com agrado, mas ainda hoje deve andar na parada. Desde que o Zé João decidiu pô-lo cá na rua a vender o cinzento-metálico tornava o veículo despercebido. O cinzento-metálico era uma cor que não caía bem a vista de qualquer um. Mas, puxa!, eu queria o Jeep tal como estava, pois do jeito que ele aparentava herdara a discrição do meu discreto feitio.

Nunca tive inveja ao Peugeot do meu pai, ou ao Volkswagem do meu tio António. Nunca senti a mínima inveja ao Volswagen branco do Marrupa. O Volkswagem do Marrupa, com os seus grandes faróis traseiros marcavam presença. E todos os meus amigos de infância o reclamavam como sendo o seu carro da vida.

Pese aquele feitio pomposo nada me interessava no carro do Marrupa, afora o facto exclusivo dele ser o padrinho do meu irmão. Confesso que bastas vezes resisti a ir em boleias alheias, não fosse a obsessão de querer um Jeep em segunda mão para mim.

Enquanto não tivesse o negócio arrumado, juro que mal pregava os olhos. Sofri bastante antes que o Jeep quedasse em minhas mãos. Tive insónias, delírios e alucinações, com algumas paranóias de permeio, pois o Zé João se fartara de avisar-me que ia o entregar a outro interessado porque não me mostrava flexível a fechar o negócio.

Qual quê! Qual carapuça? Era mais chantagem do que outra coisa. O tipo andava teso e sem outro comprador. Mas a chantagem que me causava tais doenças psíquicas resultava porque eu andava apaixonado e já muito antes morria de amores por aquele Jeep, que pelo tempo que correu o nosso romance portou-se com lealdade, antes de se decidir ou consentir a partir nas mãos do desconhecido mbava que mo canou (roubou).

Devo explicar que a minha única fonte imediata de economia poderia ter sido a bolsa da minha mãe. Mas tive que resistir, sem nunca a ter assaltado. A solução achada terá sido proceder a desvios de aplicação aos dinheiros que a minha mãe me dava para comprar lanche, na escola. Desse jeito consegui juntar tostões, centavo a centavo, até que o Jeep me sorriu.

Quando comprei o Jeep todo o mundo achou-me esquisito por causa da cor que ostentava, daí mandei-o pintar de verde na oficina do primo Filipe. De facto, a cor que por ora ostestava me pareceu mais adequada, porque se confundia com os Jeeps da tropa colonial. Eram tantos os Jeeps da tropa colonial que se cruzavam pela rua Condestável, pois lá pelo Matacuane Macamero havia o quartel. Assim me pareceu uma alternativa subtil de ter a a ansiada discrição. Os mais velhos diziam que a cor era politicamente incorrecta porque eram os tais Wills que faziam a caça acerada aos turras. Mais eu mal sabia o que eram os turras e muito menos a coisa de colónia.

Estava preocupado com a mudança rápida da cor do veículo porque me fartara de andar em boleias. E o Jeep caíu-me como uma prenda de Natal. O carro tinha um guiador que transpunha o bagageira. Locomovia-se por tracção humana. Não obstante, me via todo realizado por ter alcançado o sonho. Após adquiri-lo a minha felicidade foi tanta que tive que deixar de apertar o cinto nos intervalos de lanche.

O meu Jeep estava em condições mecânicas de tal maneira que nunca chegara a me envergonhar com avarias a meio do caminho. Salvo algumas excepções eu parava-o para remetê-lo na revisão, donde a cada vez saía novinho em folha, a brilhar. Desta forma, muitos desataram a cobiçá-lo.

Já muita gente quis vir no meu carro. As miúdas do bairro idem. Pena não as pudesse levar todas, porque não havia espaço que as pudesse comportar. Para resolver o dilema em que me encontrava reserva a todos passageiros o meu guarda-cinto, por onde eles deviam seguir-me pendurados até chegarem ao destino, pois dentro do Jeep, mesmo que fosse com mil diabos, é que não os deixava entrar nunca.

Fosse como fosse, terá sido aquele Jeep que me transportara nas visitas às casas da tias Clara e Rosa, lá para a rua 7. Terá sido aquele Jepp todo-tereno que também me levara a sagrar vencedor nos rallys, desforrando e deixando para trás o Mercedes-Benz do Pintinho, o Scania do Fifi, o Mazda do Gabriel, todos ainda a cheirar a perfume dos stands.

Tornei-me vaidoso devido as potencialidades do meu carro. Tornei-me vaidoso de tal maneira que passei a desrespeitar a outras marcas automobilísticas.

Creio que os patrões das fábricas dos outros carros rivais não gostaram das minhas vendas. Nada podiam fazer contra mim. Mas os outros amigos um dia acabariam aliando-se e mandaram os ladrões que fossem roubar o meu Jeep que estava parqueado na Cooperativa de Consumo 24 de Junho, local para onde a minha mãe me mandara comprar arroz, açucar e mais qualquer coisa de que já não me recordo o que terá sido.

Até hoje não consigo compor-me da raiva do ladrão que me extraviou o Jeep Willys. Daí me custe decidir se compro ou não novo carro, pois ainda me demoro a compô-lo com bugigangas e luzinhas longo alcance e mata-boi, como o outro, e vêem os ladrões mo tirar como o fizeram, sem dó nem piedade.


Os meus heróis e mitos

Publicado no Diário de Moçambique 10/11/07

Cada homem tem a sua ambição. A minha, é ser natural e humildemente diferente. A história, no sentido mais amplo do termo, tende a premiar todo o homem que se destinga do outro, ou seja, o herói e o vilão. Ainda que subtilmente, a "história repete-se" –Shekespeare faz questao de chamar-me a atenção.

Tenho para cá comigo os meus heróis (Fidel Castro, Mandela, Saddam Hussein, Khadafy, Karanga, Savimbi, Ansumane Mané, Sankara, general Veríssimo Seabra - com a mascote no pulso em crescendo o seu estilo carismático). Amo-os intensamente. Destituído de seus cargos, conforme as circunstâncias, encarno cada uma daquelas personagens.

Aliás, cada um dos meus heróis difere do outro pelo radicalismo, mas numa coisa são iguais: persistência e relutância. Quando tenho que ser intransigente faço-me às costelas do Fidel, Savimbi, Saddam ou Khadafy. Quando tenho que dar-me aos ossos aos establishments ou às nomenklaturas encaro a irreverência do Savimbi, ainda assim agravando o estado iminente da dúvida, a deles. O Karanga - o Jonh, o Mané e o Sankara inspiram-me lealdade e fidelidade aos objectivos. Todos eles inspiram-me a mandar à fava aos donos do mundo. Para todos efeitos, se tenho que agradar a gregos e troianos, sou o Mandela. É interpretando a multifacetidade de papéis com que os meus fantasmas em desassossego se reconciliam.

O intróito todo para dizer que à sombra destas figuras que evoco, os meus mitos discorrem das parábolas e mistérios de que fala a Bíblia, a banda desenhada, os acontecimentos anedóticos do Bocage, repletos de uma ironia eivada em sarcasmo mordaz, jocoso, com heroísmo de permeito.

Por falar em Bogage, entre as memórias da infância que mais me acodem, estão as suas fábulas. Lembrar Bocage, hoje, particularmente agora em que vos escrevo, é uma evocação ao autor das suas fábulas, porque as suas anedotas há muito reverberam-me dentro. Era um herói que animava a petizada do bairro, sempre nos acompanhava pelos emolientes fins da tarde, à volta da fogueira no aterro e sobre os muros, no nosso Macurungo, antes de recolhermos às casas após as passeatas pela mata grossa.

Às passeatas pela mata grossa chamávamos viagens. Talvez dessas heranças me constitui a maneira circunspecta de cidadão errante. As peregrinações ou procissões que fazíamos às zonas circunvizinhas do Macúti, Miquejo, Monga (Terra Morta), Matacuane, Chota, Inhamudima e Xipangara, entre outras, eram o contraponto da viagem circular de um Vasco da Gama, Diogo Cão, Livingstone ou a imitação das longas deslocações dos camionistas, pois isto fazíamos com carrinhos de lata, com pneus e jante de bicicleta, à correr, ou andar numa velocidade de cruzeiro porque ao sol poente tínhamos de volta às casas, para que fossemos à tempo de anteciparmos a chegada à dos pais, do serviço. Para que não houvesse sarilhos. Para tanto haveria que nos inspirarmos em heróis.

Não fossem as escapadelas que dávamos, principalmente nas grandes férias escolares de Dezembro e Janeiro, nunca mais teria conhecido a mata grossa (o mundo) que havia ao nosso redor e lá por Macúti, ali onde é hoje o Instituto de Cereais. Pois era naquela mata para onde desembocávamos bastas vezes. Aliás, era a pausa que se nos permitia trepar as árvores ladeadas de trepadeiras e plantas rasteiras a fim de colhermos a mazamera. Este lugar faz-me lembrar o jardim de Éden, pois lá havia quase de tudo que fosse frutas.

O Bocage era um tipo ardil. Se bem que eu nunca cheguei a desempenhar papel activo naquela recolhecção, à memória primitiva, conforme viria a aprender dos livros, não lhe fugia ao estilo. O bocage tinha um feitio medricas, de que me tornara seu discípulo. Era eminentemente urbano para atravessar tranquilamente a mata povoada de cobras, salamandras, esquilos, morcegos, corujas e mochos. Lá isto era evidente porque no círculo fechado da mata ouvia-se o zumbir das feras - e confesso que me dava pouco sossego por causa da viva lembrança que tinha dos filmes de Tarzan e Sandokan que víamos no cinema móvel, no Centro Social do bairro, ou mesmo no Novocine, Olympia, Nacional ou 3 de Fevereiro (Ex-São Jorge - ainda hoje perdura uma imagem deste convertido no Mondlane a matar o dragão, entenda-se o escorpião, como conta André Daniel Clerc em "Chitlango, o filho do chefe"). Será por minha propensão a medo que os meus amigos sempre me reservaram o papel de vigilante, coisa de que me ponho a rir pois não via motivos para exercer tal função, se bem que como míope que já era me parecera sempre absurdo. Talvez fosse uma estratégia ou meio de me acomodarem. Assim eles se encarregavam de arrancar as mazameras, mapimbis e cerejas, de que, findo o trabalho, me beneficiava na divisão do produto.

A infância me sabia bem e durava tendo aquelas frutas agri-doces sobre o palato da boca, como Knoplfi terá dito sabiamente. Me sabia bem porque as devorávamos à escuta de umas anedotas de Bogage que um dos amigos que tinha bastante jeito para humor, creio que seja o Fifi, o Pintinho, Marruma ou Sentravão, nos contava.

As facadas aos nossos pais conhecera um interlúdio quando certa vez o meu irmão Beto tentara arrancar uma mazamera que se mastreava, e bem, ao cimo de um cajueiro no cemitério do Macurungo, onde agora é um bairro (ousadamente inaugurado pelo "Mano Big" que ali começou por construir a sua palhota a exemplo do mestre "Tio Manuel" que assim fizera na conhecida zona Mazamera, para lá da Fundação Salazar) e homens e mulheres se multiplicam sob o olhar copioso e indiferente dos cadáveres, dizia, bastou ele (o Beto) arrancar o fruto para começar a gritar. Pensávamos que um dos mortos que ali jaz erguera fazendo justiça com o bastão. Qual quê! Qual carapuça? A seiva leitosa do fruto entrara-lhe olho adentro.

O Meu irmão dançou chingomana, dançou marrabenta, dançou a salsa, dançou valsa, rumba ou mandoa, como um pródigo. E chorava porque a vista se lhe encerrara em si. Nem água serviu para acudir ou conter a invasão daquela seiva leitosa que por pouco o cegava. Isto levantou um sarilho porque após a minha mãe perguntar as motivações tivemos que abrir o jogo.

Assim acabaram as fantasiosas viagens ao reino mítico do cemitério do Macurungo e Macúti. Também, por aqui começo a perceber, verdadeiramente, a aversão que tenho pelo mato, mais a sensação de mal-estar que se me apossa quando tenho que lá ir. Que não se interpréte isto como desprezo, não, sempre tive a paixão pelas cidades e a admiração às palhotas, a gente que lá vive. Digo, o mundo suburbano fascina-me pela forma como as pessoas lá se dão, uma harmonia social que não encontro no prédio onde vivo e onde igualmente os vizinhos me são estranhos e vice-versa. O subúrbio fascina-me pelos seus carreiros estreitos, que me dão impressão de algo calorífico que não encontro nas avenidas e eis que para viver a sensação de estar no subúrbio, sempre que vou as grandes cidades, procuro as ruas estreitas onde há cafés e restaurantes, onde se sentam pessoas aparentemente humildes.

O conforto da cidade já me aborrece. Fico-me a pensar, assim que passar a habitar o subúrbio será o meu segundo parto. Será porque a primeira vez que experimentei uma palhota foi quando construímos uma bela e emersa cabana, de cuja saúde tratara um anónimo maldoso que a ateara com fogo posto. E torço para que o organismo se desapiede da dependência à luz eléctrica, à água canalizada. E torço para me manter fora da dependência que um automóvel, motociclo, me sujeitaria como homem, se por ora só o computador e o telemóvel me escravizam.

Pouso esta escrita. Retomando o fôlego, afiro que quase nada me dói. Ou se dói são os que duram mordendo a si mesmos. Naturalmente quase já não devo estar aqui. Há muito que atraquei-me na órbita deste quase não existir, resistindo, vivendo subtil na senda deste heróismo que sendo sonho, é a miragem acacorada do escriba.

Escrito a gato

Publicado no Diário de Moçambique 10/05/08

Eu gostaria de ser o teu gato, um gato que a cada dia te dissesse bom dia, um gato a quem tu ouvisses com atenção, um gato a quem tu procurasses e lhe perguntasses dos seus anseios, dos seus sonhos e desejos, um gato que corresse para ti e te saudasse com saudades que um gato pode sentir do coração a quem ele pertence, eu gostaria de ser o teu gato, a quem falasses das estórias do mundo, das fábulas de Shekespeare e Esópo, e aventuras que nunca ouvi e desconheço, de Xantipa, a mulher de Sócrates, de Tebas das sete portas, ou de Zanzibar que conheceria dos teus olhos, ou ainda de Otawa que sopunho bela como tu.

Eu gostaria de ser um gato que fosse a correr aos teus pés, ao encontro das tuas mãos, da tua pulsação, e num salto a prumo, te chegasse ao colo, ou mesmo aos cabelos como só um gato pode chegar ao pico do Klimanjaro. Eu gostaria de ser o teu gato, um gato que velasse por ti, que cuidasse eventualmente do retrocesso duma tempestade ou da chuva, um gato que te secasse a humidade do tempo, um gato que lhe desse calor com os seus pêlos e que te falasse da vida difícil de outros gatos e da beleza que é ser tão-somente o teu gato.

Eu gostaria de ser um gato, a quem consentisses a liberdade de voar ou pular pelos ramos sem fim e diversos da árvore do teu corpo, pelos quais, suave e delicado, pudesse conhecer as torres do teu peito, a Baía do Hudson, o Atlântico ou o pacífico que há em ti, eu gostaria de ser um gato com uma almofada ou pousar a cabeça em teu corpo, um gato que te falasse da terra vasta que há em ti, ou do mar que se resume os teus olhos, um gato que te falasse do universo além e da Babilónia resumido nas tuas mãos, ou lábios ou cabos.

Eu gostaria de ser um gato que te levasse flores, beijos, baixo a uma atmosfera plena de Sol ou de luar, um gato a quem tu cantasses os cânticos dos pássaros, o serão das aves pousados sobre o teu ombro, um gato humano que te acordasse a beleza das estrelas, a beleza dos navios atracados e acostados em teu coração, um gato que rompesse aos teus olhos como os cravos, as bunganvílias e as tílias, a quem falasses do amor que nunca amamos, como os amores dos sapos, peixes, das tartarugas e dos crocodilos, até das pedras, mesmo das estrelas.

Meu amor, eu gostaria de ser o teu gato, com que falasses uma língua nossa que ninguém pudesse entender, uma língua estranha como a dos nenúfares, das pedras e dos astros, como a dos cantos dos galos pela qual expressamente nos pudessemos entender, a língua do amor, a língua da emoção que ambos sentimos, para correr nos teus braços e juntos aos teus passos que iguais não os conheço por aqui.

Meu amor, como o teu gato que quero ser fala-me dos frutos que nascem em tuas mãos, das palavras amadurecidas em teus lábios, das palavras quentes, que desde que nos demos mutuamente vagueiam no meu pulmão, melhor no coração, melhor nas veias, melhor nas artérias e aurículas, como o sangue bombeado por ti e do qual sofregadamente respiro e vivo. Fala-me das pontes e estradas e carreiros e rios e vales por onde devo seguir até chegar a ti que eu falar-te-ei da doçura de um sonho que se passará por seu novamente um homem que te escreverá da nossa vida em comum de gatos e juntos pintaremos a nossa vida comum de gatos.

Só de gatos, amor meu!

O mussopo
Ao cantor Madala, lembrando Ponessa musi wango
Ao Pintinho, iluminando as andanças do passado


Diário de Moçambique, 14 de Abril de 2007

Porque seria que pelas águas estagnadas homens, mulheres e crianças passavam horas a fio, de dorsos curvados sob as cinturas, segurando latas cilíndricas sem fundo por onde metiam as mãos?

Eu apenas conseguia vê-los naquilo que supunha ser suas cogitações movidas pelos tempos coléricos e pestíferos. Parecia subsistir ali a sobrevivência. Mesmo parecia que os homens andariam a buscar ali as esperanças que tinham perdido, parecia ainda que as pessoas tentavam regatear umas esperanças que eventualmente teriam sobrado nas estagnadas águas. Até que alguém me dissera que andava equivocado, pois o pântano continha aquilo que meu ouvido percebeu tratar-se de um nome estranho: o mussopo ou ncone.

O esclarecimento por si não bastara. Que peixe seria aquele que se captura com latas sem fundo? Para melhor aclarar-me, afigurou-se-me necessário conhecer o "estranho bicho" que, conforme viria a saber, habita junto às faixas de rios salobros e ainda nos pântanos e lamas por alturas chuvosas e secas.
Um dia, os meus amigos Alexandre e João Nhabombo acabariam por me levar para o pântano que se formava após períodos chuvosos por detrás da Casa das Irmãzinhas de Caridade, na ex-zona da Fundação Salazar, no Macurungo. Uma vez aqui os tipos desataram a apanhar o "estranho bicho" a anzol, quando os outros convivas faziam-no com as referidas latas.

Levou bastante tempo até que visse um ncone a ser capturado. Cá deste lado de fora eu e meus amigos só víamos os pescadores palmilhando cada perímetro do charco. A gente contemplava os captores imergidos no pântano de dorsos inclinados, num ritual revestido de sepulcral silêncio por sua vez quebrado por movimentos a cada ondulação circular da água, com que se detectava e se localizava a presa, o que servia para espetar a armadilha sobre a área agitada. Era um exercício ritmado, em que se viam os protagonistas inclinando mais fundo e a meter a mão para dentro daquela armadilha a ver se apanhavam os peixes à mão.

O mussopo é um peixe, por assim dizer, incomum nessa classe de vertebrados, pois as suas barbatanas cobrem o dorso inteiro, prolongando-se até à cauda . E não só, de compostura e pele escorregadia, por não possuir escamas, o mussopo é deste modo difícil de apanhar à mão, correndo o captor o risco de ser violentamente atacado com uma feroz mordida que lhe pode custar a sua amputação.

Aliás, sendo a criatura feroz, nunca entendi o motivo que os levava a perseguir de forma acerada o "bicho" que detém a particularidade estranha de resistir não menos de três dias fora da água. Mas os protagonistas da faina evocavam o sabor da sua carne que diziam ser bastante apreciada, motivo porque lá pela Europa tornou-se uma espécie protegida, tal como se justificavam. E eu a sorrir da desculpa que então dava por esfarrapada, só agora acordei para a realidade.

O ncone tornou-se-me um bicho sadio porque pelas alturas de seca os apreciadores da sua carne apanham-nos naqueles solos aumentando as gangrenas, abrindo buracos de meio metro em diante para os alcançar sobre o lençol de água. Ele adquire essa particularidade no ciclo da hibernação, ao longo do qual ficam um período longo com a cauda espetada na boca.

Dizem que nesta fase a cauda contém micro-organismos essenciais à sua sobrevivência. Mas não me suporto a imaginar um "bicho" debaixo da terra com a cauda enterrada na boca.

Foi pois, esse, o meu primeiro ofício. Apanhar mussopo e cacanas, uma espécie de peixe de água salgada disponível nos canais do Chiveve. Aliás, verdadeiramente quem os apanhava (os mussopos) eram aqueles amigos que considerava bastante corajosos, enquanto o Djidja, outro amigo meu a viver em Durban, preferia pescar cacanas, que capturava comigo, na pesca desportiva, lá para as praias do Clube Náutico, Monumento dos Descobrimentos e Beira Terrace. Porém, admirava-me a habilidade e flexibilidade dos meus amigos que tiravam-nos das águas argilosas a anzol inventados a partir de alfinetes.

E quando não vendêssemos os mussopos, o bicho podia permanecer ao relento sem ser congelado. Era uma vantagem excepcional, ademais não poderíamos levá-los às geleiras dos pais pois sabíamos de antemão, tal daria sarilhos.

Enquanto não tivéssemos clientes que nos pagassem como deve ser, lá o pescado (mussopo) gozava os ares, refrescando-se ao sol ou à sombra. Tal como nos desse na real gana. Às vezes testávamos a resistência do bicho dando umas pedradas e açoutadas de vara. O bicho reagia dando gemidos semelhantes aos de um ser humano: "uff". Será por isso que alguém nos terá dito que não o devêssemos comê-lo porque o mussopo era uma reencarnação dos ancestrais. Aperfeiçoámos o nosso ofício quando descobrimos um freguês, esse que passou a levá-los a crédito de cinquenta centavos por unidade. O freguês jamais nos terá pago. Assoma assim uma dívida com juros que se viesse a liquidar hoje, atendendo às desvalorizações consecutivas que a moeda vem sofrendo desde então, resultar-nos-ia numas economias que dariam para comprar um apartamento.

Nós que pouco entendíamos de ciências ocultas até chegámos a acreditar que as plantas que emergem das tumbas são outras formas de reencarnação dos defuntos. É uma discussão que reservaria aos mais sabidos, embora ainda hoje a lembrar-me dos mussopos seja apossado pela impressão dos seus gemidos, que me pareciam os dos mortos a zangarem-se connosco, por sermos diabos em pessoas. Terá sido este facto que me levara uma vez a confessar-me ao padreca, pois vi-me atingido por manifesto sentimento de culpa, se bem que em toda aquela área onde os buscávamos os indígenas haviam usado para acoitar a alma dos seus.

O mussopo tem uma derme verde-cinzenta, que o tornava ainda menos visível a meio do lodo, o que nos dificultava ainda mais a pesca. Assumiu outra dimensão no meio da malta. E tornou-se este pescado o mascote de um jogador do clube de Belinho e Sérgio Sadique, hoje donos do Benfica do Macúti. Estou a falar do avançado Memba, o mais negro de todos os negros que alguma vez terei visto na vida. O Memba dificilmente se distinguia na penumbra crepuscular daquela tarde em que os adversários metiam bolas na nossa baliza e o tipo, como um mussopo, zás catrapuz surgia escorregadio e a correr e a fazer o gosto com o pé direito, após driblar o nosso guarda-redes.

Nota: O mussopo é um peixe da família dos murenídeos tais como a enguia, o congro e a moreia.

O "monstro" Shikani

Publicado no Diário de Moçambique, 10/07/07

Entre as imagens fantasmagóricas e tenazes que me povoam a memória, sem dúvidas, estão as de Shikani. Cabeças, narizes, abdómens, lábios e olhos enormes, descomunais aos membros superior e inferior, descalços. Os homens de África, as mulheres de África. Corpo e alma. Alma e corpo e coração. Sensibilidade e faro: África. Personagens monstruosas mas flageladas pelos ventos "este" e "oete".

É ele que capta as expressões do rosto, os gestos semoventes. Capulanas, calções. Pai da natureza e identidade que concorre para dentro de si: a negritude. Sedentas de afirmação, aqueles olhares esbugalhados, uma toda cultura e povo encarnados num homem. Porta-voz duma maioria oprimida, depauperada pelos cinzentos séculos de escravismo.

Leio-lhe as obras percorridas de memória, idos os anos distantes, longínquos, idas as indagações e quietações a volta do conteúdo das mensagens reunidas nos quadros fixados às paredes da sua casa do Macurungo. Ele ausente/presente do circuito da convivência. Pelas "Europas" e África repartido. Mais propriamente no dizer de Bertina Lopes corpo além fronteiras, "aqui a alma". O aqui cognomina-se um dos bairros dos arredores de Maputo, muito afastado do rebuliço citadino, onde, corridos tempos distantes, removida a barreira da longitude e latitude, o fui visitar, levado por Mablinga, o filho, esse amigo que acedera acompanhar-me até junto do "monstro" Shikani, o Ernesto Pais ( nomes próprios como posteriormente vim a saber da pessoa que insistimos chamar Shikani).

Porquê a necessidade de encontrar o Shikani? Nostalgia, e mais do que isto, debitar a dívida, o tributo, pelo que a sua imaginação me tinha dado a ver, desde a fértil idade. Sou nostálgico do passado e futuro. Precisava apascentar novas obras suas com os olhos, que mais uma vez me terão consentido o privilégio de estar diante às suas corres aguerridas, alegres, o traço seu que corre o mundo à busca da insigne notoriedade de África. Como noutro tempo percorri demorado a sua inventiva, acariciei a impressão digital que lhe é característica, mesmo que seja à espátula ou pincel. Com ela exorcismam-se fantasmas e demónios de qualquer que seja o observador. Lá está a respiração, o coito, o açoute e o acoitar-se, a pervagação, a dúvida. Fidelíssimo a matiz, a raiz, a essência. A dele e a de muito de nós. Sem cisão com a partida.

Não posso contemplar os quadros de Shikani sem que, no final, me dê conta que teria sido anestesiado por um antídoto que se nos faz reféns por extensos minutos.

Até um seu mural destruído pelas forças da ignorância no Centro Social do Macurungo, nesta Beira que também é sua, ecoa dentro de mim. Reverbera. As sinergias das forças anímicas que lhe davam o prumo tornam possível os acordes do peito e do sangue. A mesma veia.

O "monstro" Shikani acorda-me, sim, a galeria dos "grandes" ausentes e renomados que Macurungo "talhou", assomando-se-lhe o Romualdo, Fernando Luís, Saidinho (todos cantores), já no estrelato, com Mussagy Ibraímo (líder e proprietário da banda Alta Dimensão), também pai dos meus sumamente amigos Bay e Dinho. Um contudo, o músico Lulú, vulgo Djalma Lourenço ( meu ex-professor de história na Sansão Mutemba e hoje governador de Gaza) - a quem evoco não seja a despeito de eventuais e futuros dividendos- o Djalma, repito, já andava no trilho daqueles pelo Auditório Galeria e Arte (Hoje Casa da Cultura), a par dos irmãos (do Lulú) Manecas (que Deus o tenha!) e Lito, ambos guitarristas e animadores lá na Paróquia do Macúti.

Dos nomes que Macurungo "talhou" talvez me deva referir ao Manecas, homónimo do outro, aliás, dizia, o Manecas (Mano Necas), o guitarrista que se ficou e jaz por Nampula, tem aqui o seu tributo, dado as horas a fio em que se dedicou ocupando de mim e dos meus irmãos, quando aguardávamos pela chegada da minha mãe de mais uma faina laboral. Quem terá tido o privilégio de ouvir da boca dele "I Want break free", "O meu primo Zeca", "Garota para mim não é nada", "Jesus Cristo Eu S'tou aqui", "Nikita", "Aleluia", de Peter Gabriel, "Let Be", dos Beatles, "Manga", de Wazimbo, "Malaica", de Miriam Makeba, entre outros? Digo que em parte fomos nós que desfrutamos da tal sorte, o que era mediado de chás, papossecos e carapaus que a minha mãe trazia lá da Loja do Povo, ou seja, Pescom. Como era apanágio em fins da tarde e após o duche que varria a sujidade do futebol feito a bola de trapos, vulgo massacala. Como era ainda apanágio por aquelas alturas em que a então "cidade do futuro" ficava privada de luz por cerca de meio ano e o Nelton, o Guta, desafiava umas pinturas paisagísticas, por assim dizer, bem sucedidas, do lado oposto à nossa rua 5. Eram pinturas que ele colocava depois nas defuntas galerias "Tam-Tam" (Recordações Africanas) e "Coroas de Moçambique", sublinhe-se aqui o "Tam-Tam" pois foi o lugar para onde em 1987/88 eu passaria a levar as minhas primeiras pinturas para serem comercializadas pela Zinha. Não davam tanto, mas quanto muito serviram para sustentar parte dos meus estudos.

Tinha perdido o fio da meada. Falava do vulto ausente/presente de Shikani agora a passar-me um recado que me terá ficado após a privação: "Na arte é necessário aventurar". Que quererá ele dizer? Persistência, perseverança e, acima de tudo, firmeza.

De facto, na arte como no todo. "É necessário aventurar", digo sempre cá para comigo. Shikani resiste na memória privada e comum. Dentro de mim registe uma casa situada numa zona pacata da cidade capital, mas nem por isso, contém um homem e uma obra cujo valor transpõe o seu diminuto átrio. Um homem, por assim dizer, que se passeia por todos cantos do mundo transportando as ressonâncias e raízes, desde Marracuene a Macurungo, de Macurungo a Maputo. Um homem desigual a tantos, de nenhuma aspereza.

Aos despedir-me do "monstro" sedimentou-se-me na memória aquilo que desde há anos dele tenho visto na Beira, no Palácio dos Casamentos, no Sandromar, hoje Tropicana, Restaurante da Casa da Cultura da Beira. Uma pintura que passa e ficará para todo o sempre. Por lealdade e fidelidade ao traço. Como o homem. Do outro lado do portão o vulto do aventureiro postado de bruços, corpo escondido, e a cabeça transpondo-se para cá fora, a vista suplantando para lá do mundo exterior, acenando­-me a mão, à hora de bai.

Que irei fazer domingo à tarde?

Publicado no Diário de Moçambique, Fevereiro de 2007

Ainda outro dia andara em círculo de conversa com amigos. A conversação girara em torno dos tempos do carapau e repolho. Acudimos memórias antigas, quando vamos para adultos. Umas tristes. Outras, espantosas. Generosas. Brilhantes. Cintilantes.

A vista da memória tem a faculdade de nos iluminar àquele passado luminoso. A objectiva da memória é ela que se encarrega de arquivar e esgravatar as imagens do passado, para o infortúnio de qualquer objectiva real. É uma magia circunspecta a um tempo que a lente de um Rangel ou Kok Nam jamais ousaria capturar, o que não serve para os desmistificarmos. O glorioso passado só pertence a nossa memória comum, por isso dispensamos o pedido de registo ao Rangel, Naíta ou mesmo ao amigo Sérgio Silva.

A nossa meninice não foi sem significado e discorre destas memórias de que me proponho a desarquivar, como um longo novelo. Um novelo que mal sei agora onde principia e acaba, pois desfiá-lo não é uma tarefa linear, o que por ora poderá complicar-me o exercício da sua desarrumação.

Pois é, na conversa descrita desaguamos à lembrança da tríade Simão, Angito e Pepe. Sim, o Simão e o Angito que chegaram a jogar futebol no Clube Ferroviário, aquele Ferroviário que cheguei a adorar, não sei se como o primeiro amor ou namorada, porque quando a equipa perdia eu me fechava e copioso punha-me no quarto a chorar. No dia em que tal sucedesse fazia-me fugidio por causa dos amigos que zombavam de mim.

Íamos ao campo aos domingos, sim, muitas vezes sem termos almoçado ao menos. Lá sabíamos. Aos domingos em nossas casas se atrasavam com o almoço, depois a expectativa de vermos os nossos ídolos: Rui Marcos, o Orlando Conde, o Dover, o Calado, o Calton, o Mandito e o JJ nas quatros linhas certamente diluíam a greve dos parasitas estomacais. Sabíamos. Uma vez regressados do "estádio" iríamos encontrar alguma surpresa: o feijão domingueiro que atrasava tudo e bolos de forma que eram a mascote do fim-de-semana, e que animavam ainda a nossa infância. Certo é que tanto os feijões, os bolos e a coca-cola de hoje não levam melhor sabor sobre os do passado. Era o Sol da infância e a maravilha do tempo que acrescia algo misterioso sobre os nossos paladares. Vejam lá que não tínhamos consciência do fogo das armas que se disparavam pelos arrabaldes da cidade, lá pela Manga, e nem mesmo do quanto suor e sacrifício a que os nossos pais se sujeitavam para trazer a vislumbrante refeição de domingo à mesa. Claro que tudo reluzia porque os craques que surgiram à posterior, Nico, Filipe e Zé Manuel, a quem saudávamos pelas ruas da urbe, onde os interceptávamos, assumiam uma dimensão espantosa nas conversas adiante na escola e nos muros do nosso Macurungo, fazendo discorrer ainda mais o paladar agradável da coca-cola que apenas era coisa de fim-de-semana. Mal saberia que um dia me chegariam estas nostalgias. Aquele Carlitos, médio volante do Têxtil do Púnguè, pés de alicate, conforme dizíamos e estendíamos o epíteto ao Ossumane, o moleque do Nelito, sabem o que se passou? Morreu. Como ele, morreram os avançados Dover, Landocha e os meios campistas Marcoto e Pinduca. Enquanto a memória rumina a volta destas perdas, sobreleva-me mais uma tragédia recente, deste que se tornara cúmplice da malta no Café Capri, o Artur Meque, que se foi no pernicioso silêncio. Quem diria que os meus ídolos acabariam assim? Nem sequer tinha na memória o que era a morte. Havia em mim a crença da eternidade, que as coisas não acabariam de jeito que se me tem afigurado. O mundo durava na nossa ingenuidade. Hoje, confesso-vos, não sei nada de futebóis. "Que irei eu fazer domingo à tarde" nos estádios vazios? O Palmeiras já não é aquele viveiro de craques, que enchia de orgulho aos meus amigos Jordão (a jazer num dos cemitérios da urbe), Didinho (em Portugal e com pouca expectativa de sair da diáspora), Nelinho e Chico, de que eu apenas recebia vexames por o meu clube andar no provincial e o deles (o Palmeiras) no Nacional. O mesmo Palmeiras que trouxe à Beira a Taxa de Moçambique. No meio dessa tristeza animou-me um dia ter encontrado com o ex-guarda-redes palmerista Paínhas, que se especializara em defender penalties.

Ao início de cada temporada éramos nós que nos metíamos nos Ikarus e roda batida rumávamos ao Têxtil do Púnguè, Ferroviário, ou mesmo aos Palmeiras, a admirar o viveiro de craques chegados ou "comprados", para a nova temporada. O Textil do Púnguè era um encanto. E sempre que penso nele ocorre-me o malabarista Duarte, jogador estiloso e espectacular à maneira de Emílio Butraguenho. O Duarte fazia a plateia delirar, iluminava-nos às tardes mágicas, sobre as bancadas do Ferroviário da Beira. O Têxtil do Púnguè, único clube que nos trouxe a glória de um campeonato nacional, terá sido muito recentemente escorraçado do recinto onde em tempos nostálgicos afinava a sua máquina. Que dirão o Adamo, o Jerónimo, o vovó Proença, esse, como o Rodrigo dos Santos (ex-treinador do Têxtil), dono de um sorriso bonacheirão, no que se depreendia acima das bancadas e nas imagens que acompanhavam as entrevistas dadas na antevéspera dos jogos, no "DM". O "derby" ainda não se realizara, mas o Rodrigo era ele quem aumentava a expectativa prometendo a massa associativa mais uma vitória? Ao que chegamos! Quase chorei após ouvir que os novos patrões do "Púnguè", como o tratávamos carinhosamente, não querem nada com o team. Pois é, isto me comove porque em tempo de desgraça foi esta equipa que amainou o sofrimento que a guerra e a fome impunha a muitos corações.

O futebol arranjou-me problemas que ninguém imaginaria. Em casa, ao fim-de-semana, a regra era ir à missa às oito horas da manhã, um ritual que era seguido do matabicho, pelas dez, onze. Quantas vezes a minha mãe teve que me punir porque a minha prioridade começava por ir ver os Cruzados jogar no campo da Lonrho ou da Estiva, esses Cruzados donde emergiram o Angito, Pepe, Simão, Henriques (o Lara), Marcoto e Gil, aquele Gil que após um início fulgurante no meu ex-Ferroviário, acabara a carreira com uma grave lesão que se a memória não me atraiçoa resultou de um encontrão com o Nuro Americano, de cujo nome cada um reivindicava quando se tratasse de estar entre os postes. Repito. O Gil é o espelho da ingratidão que reina no futebol. Deambula pelas ruas poeirentas do Macurungo pedindo cigarros, como que esquecido da sua glória. O Gil, que sempre me chamou atenção por causa da paixão que tinha à literatura, parece não lembrar de nada e da bola que ele tratava por tu, fazendo toques com o pé e as costas voltadas para o chão. Certo, na baliza eu sempre fui o Filipe, a libelo joguei sempre à JJ e ainda hoje sonho os cortes à bicicleta que fazia e a desarmar um ofensivo adversário, embora desacredite que a obesidade o venha permitir.

Ai!, a dimensão séria que tomavam as nossas partidas de futebol, com o senhores Victor Vicente e Joaquim Dimene (de que me recordo, creio ter sido em 1981, um dístico por si alinhavado: "Doa a quem doer o Têxtil é campeão", pese embora não saiba o que ele pensa do seu Têxtil), debruçados sobre os muros a assistir-nos, mal imaginávamos que todos nós viéssemos a ter menos glória que o Zé Luís, o tal que conheceu o epíteto de Zé Gato, ou mesmo o seu irmão Betinho (Deus os tenha), que acabariam por trazer uma palavra que todos nós detestávamos encarnar em pessoa: banqueiro, esse que depois vim a saber tratava-se do jogador reserva, o dito suplente. Lembro-me do Sengo, do Têxtil, que só entrava na baliza em jogos particulares, todo inseguro porque consciente que se posicionava no lugar pertencente a Betinho, e lembro-me também do Maló, substituto de Zé Luís, o tal Maló que era um espectáculo na baliza, e por ser quase veterano, alinhava uma vez a outra, noutras intercalado de seu suplente Gabriel, que era um frango. Certo, o falecido guarda-redes do Avícola, Henrique, entre nós conhecido por Lara, era espectacular.

Saltou-me agora a memória que a nossa forma de actuar em quatro linhas tinha que ver com o facto de entre o público haver uma claque feminina que vexava os jogadores desabilitados. Mas era um tempo que mal sabíamos o que era uma mulher na vida de um homem, pois se chegávamos a amá-las era no meio de sigilo e a intimidade que acabava com beijos dados nas bochechas e lá na igreja quando o padreca apelava "a paz esteja connosco". E os nossos amores duravam uma eternidade, tal a infância que se nos reserva surpresa atrás de surpresa.

Todavia, com a malta Angito, Simão, a coisa não sucedia exactamente assim. Ter um ou dois anos de diferença naqueles tempos era muita coisa. Os tipos nos repeliam, e uma das coisas que me fizera tornar cúmplice deles, decorre das minhas primeiras leituras de jornais, banda desenhada e romance. Devo os primeiros passos de escrita, entre outros, a meu pai, que tinha uma biblioteca, de que me tornei fiel depositário, melhor, herdeiro. Nela dormiam, só para citar alguns escassos exemplos, Camões, Pessoa, Dick Haskings, Vitor Hugo, Émile Zola, Fyodor Dostoyevsky, Ágatha Christie, Alexandre Dumas, T.S. Eliot, Morris West, Balzac, Gorky, Sommerset Maugham, Stendhal, James Bond, Caryl Chessman, entre outros. Quando os tipos descobriram que lá em casa havia tais livros nunca mais me largaram. Lhes dava de empréstimo (quem não mos devolvesse compensava com o que tivesse) e é por isso que ainda hoje tenho "O Caso da Mulher Nua", de Ross Pynn. Tudo isto porquê? Lembram-se da M. Clara? Foi graças a tais trocas que vim a descobrir o que se estendia para lá das cumplicidades que tinham com a rapariga, essa que garanto ter tirado a virgindade a muitos dos meus amigos, e cujo paradeiro me é desconhecido. E por falar nela me foge o paradeiro do Castro "Menodhje", um tipo latagão quase da altura do gigante de Manjacaze, que passou de lado na carreira de futebolista, pois a sua estatura não permitia recolher as bolas disferidas em remates rente ao chão.

Noutro dia chateou-me o Vicente "Ululu" que transcorridos anos de desencontro advertiu-me só falará comigo quando eu o for comunicar que já tivera um filho. Veja-se o castigo.

Veja-se o preço da amizade! Mas não é o que está acima do intróito todo.

Certo que já não vou a matiné, nem a praia, nem ao futebol.

Que irei fazer Domingo à tarde?